*Este é um artigo de opinião do autor, não representa necessariamente a opinião da WDN como um todo.
No último texto vimos como tendências liberais, uma aversão ao nacionalismo e a memória da guerra se refletiu nos animes e mangás das décadas de 70, 80 e 90, mas o que ocorre quando a sociedade se encontra numa posição totalmente inversa?
No Japão dos anos 2000, vemos justamente onde culminou toda a trajetória liberal do país nas décadas passadas. A supremacia do partido Liberal-Democrata foi substituída por governos liberais nos anos de 94 a 96, e uma breve guinada à centro-esquerda, com um primeiro ministro do Partido Democrático do Japão sendo eleito em 2009, e governos conservadores do partido Liberal-Democrata dentre estes, incluindo o primeiro mandato do governo do extremamente popular Shinzo Abe, assassinado durante um comício em 2022.
O fato é que o contexto político por trás não agradava os japoneses. Yukio Hatoyama, primeiro ministro de setembro de 2009 a junho de 2010, foi obrigado a renunciar após escândalos relacionados a financiamentos ocultos e ilegais durante sua campanha, apesar dele não ter sido indiciado por nenhum crime, assim como pela má gestão do caso da base de Futenma. Seu sucessor, Naoto Kan teve ainda mais dificuldades durante seu governo, pois a China, rival/inimiga histórica do Japão, ultrapassou o país no ranking das economias globais, ocupando assim a segunda posição, e além disso, também em seu governo ocorreu o terremoto de magnitude 9.1 na região de Tohoku, que destruiu diversos prédios, causou um tsunami que assolou a costa japonesa, e levou a uma crise radioativa após o derretimento de 3 dos 6 reatores da usina nuclear de Fukushima. O desastre causou quase 20 mil mortes, feriu cerca de 6 mil pessoas, e mais 2,5 mil continuam desaparecidos até hoje. Kan foi acusado de má gestão durante a crise, e foi pressionado a renunciar, o que efetivamente ocorreu em agosto de 2011.
Seu sucessor Yoshihiko Noda conseguiu comandar o Japão pelo último ano de governo do Partido Democrático até as eleições gerais de 2012, mas não foi popular o suficiente para impedir a vitória expressiva do partido Liberal-Democrata sob o comando de Shinzo Abe, fazendo assim o Partido Democrático perder 3/4 das cadeiras do parlamento, e reestabelecendo a supremacia do partido Liberal-Democrata, que continua no poder até hoje.
Yoshihiko Noda, o último primeiro-ministro do Partido Democrático |
Ok, mas por que estamos falando de ciência política em um site de animes mesmo? Você provavelmente tá mais interessado em saber sobre o isekai da nova temporada do que sobre a história dos primeiros ministros do Japão, mas a razão é simples, e é porque os animes que vêm sendo lançados ultimamente retratam justamente a ideologia política japonesa contemporânea.
Nos últimos anos, a estagnação econômica do Japão, a primazia chinesa na disputa pela Ásia, a submissão para os EUA e ONU nos últimos 50 anos, e a não existência de forças armadas (oficialmente, apesar de ter uma marinha, exército e uma aeronáutica, o país não possui forças armadas, somente forças de autodefesa, que não podem atuar fora do território japonês) causaram um ambiente de descontentamento e a volta do nacionalismo, além de investimentos em defesa, por conta do temor dos vizinhos orientais (Rússia, China, Coréia do Norte), e isso se reflete muito nos animes de hoje em dia.
Nos últimos 20 anos começamos a ver animes com mechas que tem exatamente a mesma temática: Japão dominado por outro país, população japonesa praticamente escravizada por outras nações e a revolta do povo causa a criação de um movimento revolucionário para a restauração do Estado japonês, pautado em um forte nacionalismo e em suas tradições antigas.
De cabeça consigo me lembrar de três animes que tem exatamente essa ideologia: Code Geass: Lelouch of the Rebellion, Guilty Crown e AMAIM Warrior in the Borderline (esse mais recente). Todos esses seguem a mesma lógica, algum país/organização internacional invade/intervêm no Japão e passa a controlar, censurar e dominar a população, assim, uma organização (normalmente de jovens ou com grande presença de jovens) livrará o Japão da tirania desse agente externo, normalmente com uma larga dose de nacionalismo, e as vezes com pensamentos neoliberais (como em AMAIM).
Será que até Code Geass, um dos mais populares animes, esconde propaganda? |
O roteiro desses animes parece algo que vem diretamente da cartilha do Partido Liberal-Democrata, ou diretamente da cabeça do japonês conservador médio, e a conclusão (ou ao menos, propaganda oculta na obra) parece relativamente clara: cabe aos jovens salvarem o Japão, garantirem sua autonomia e a vida longa do Estado e da cultura.
Outra coisa interessante de se mostrar é como todos esses animes apresentam esses temas por meio de poderes quase sempre mágicos, mas as vezes tecnológicos também. Isto também se relaciona com o pensamento do Partido Liberal-Democrata, aliás, o slogan atual do partido é justamente "para um novo Japão com a voz da religião". Mesmo que estes animes não apresentem uma religião real e específica, e muito menos cheguem a de fato focar nas religiões (ou mais especificamente, na origem sobrenatural do poder adquirido), a mensagem final se parece muito com uma noção de que "o poder para vencer e governar vem de cima, do sobrenatural".
O caso de AMAIM também é muito interessante, porque o poder superior que guia os protagonistas para a vitória não é nem místico e nem sobrenatural, muito pelo contrário, é tecnológico, e é representado por meio das inteligências artificiais que vão guiando e orientando os protagonistas.
Em AMAIM, a ideologia política está escondida entre as lutas de robôs gigantes |
Se for pra sumarizar em poucas palavras o que eu escrevi nos parágrafos acima, seria algo como "Os jovens precisam defender o Japão da inevitável dominação dos países estrangeiros, e para isso, precisam buscar sua força em algo (como a fé ou a tecnologia), e equiparar seu poderio militar com o de seus dominadores".
Claro, parece uma frase totalmente ridícula, e muitos vão dizer que eu passei muito dos limites razoáveis, e talvez eu tenha mesmo, mas vamos analisar isso criticamente.
Primeiro de tudo, isso não significa que todos esses animes sejam ligados com o Partido Liberal-Democrata, ou que eles tentem de alguma forma defender essas ideologias, mas como eu disse no outro texto, a arte é uma maneira de passar uma mensagem, e se é possível enxergar essa mensagem nestes animes, é porque os diretores destes convivem com estas questões em seu dia a dia, e sejam apoiadores ou sejam críticos, eles passam em suas obras idéias trazidas pela sua convivência na sociedade nipônica. Idependente do pensamento político, claramente, a mensagem passada pelos animes replica a ideologia da população japonesa, representada neste caso, pelo partido que a mais de 20 anos governa o país, e que desde sua fundação, não comandou o país em somente duas situações.
Segundo, não é como se essas questões fossem afastadas da política japonesa. O país vive nos últimos anos uma intensa crise política, e essas questões são algumas das mais debatidas. O atual primeiro-ministro do país, Fumio Kishida trouxe um debate acerca da necessidade de reformar a constituição e fortalecer a defesa do país, mas e o apelo a juventude? Bem, a juventude é onde reside alguns dos problemas mais visíveis da população japonesa, os jovens são despolitizados, não desejam participar na política, tem pouca perspectiva de carreira e não estão formando famílias, a população japonesa está envelhecendo e os jovens não estão prontos para tomar o lugar, assim, como o anime é consumido em maioria pelos mais jovens, logo, este se torna uma arma para incentivar estes a participar ativamente da política, ou simplesmente da construção de um Japão melhor.
Animes sobre política e economia podem ser uma tentativa de politizar os jovens Divulgação: Crunchyroll |
Muitas vezes, até nos animes que parecem apolíticos, vemos uma tentativa de influenciar a juventude japonesa |